terça-feira, 28 de agosto de 2007

O Espelho

Nunes cresceu jogando em um campinho no fim da rua sem saída onde morava sua família. O assovio da avó era o chamado, fosse para almoçar, jantar, fazer as tarefas de casa ou comprar verduras na venda, tudo realizado prontamente, sem reclames ou questionamentos. Um amigo seu um dia perguntou porque ele aceitava e fazia tudo tão corretamente, na hora. Nunes sem entender a pergunta, mas respondendo com precisão, rebateu, são eles que me criam e me dão casa, comida e roupa, posso fazer pouco por enquanto, mas tenho o que fazer, aliás, gosto muito de todo mundo, vovó, o véi, minha mãe, do pai, e dos moleques, um dia vou criar os meninos e eles vão pra escola boa. O amigo ficou satisfeito com a resposta e rebolou a bola no peito do desprevenido Nunes, que num reflexo físico estudado fazia anos, abafou a pelota num encolhimento do tronco e a rolou corpo abaixo até ser aparada pelo peito do pé, dois segundos de equilíbrio e devolveu no peito do colega que abaixou os joelhos e cutucou de ombro para a cabeça de Nunes, ele abaixou o corpo e tentou bater de calcanhar sem olhar para trás. Meteu um chute na canela do pai que vinha passando e ia tentar roubar a bola do filho de surpresa. O seu pai trabalhava de roupeiro em um time e era o maior contador de crônicas futebolísticas do bar da rua. Crente, não bebia, mas não perdia uma partida de sinuca por nada, não apostava, deixava a ficha para o próximo, se conseguissem tira-lo da mesa. Bebia suco de laranja e guaraná, vez ou outra roubava um cigarro picado do maço que ficava na registradora do balcão e se escondia nos fundos do bar. Dava duas baforadas e a memória vinha feliz. Bons tempos de cachaceiro mulherengo. Mas começou a cair pelas tabelas e a esposa, por intermédio do irmão, o levou para trabalhar no time e lá ele se ajeitou e, influenciado por um dos craques, passou a freqüentar a igreja.
Nunes quase desaba de rir do pai com as mãos na canela, buscou a bola no portão do vizinho e deu na mão do coroa, que recuperado experimentou umas embaixadas, chamando o filho para a peleja ajustando a bola com a canhota, apenas com o dedão do pé levemente encostado ao lado dela. Nunes aproximou-se decidido, em passos largos entrou centralizando a defesa. Dedão rapidamente empurrando a bola para a direita, pé passando por cima, e a volta da bola para a esquerda num toque de final explosivo, mas preciso, o elástico estava dado, e Nunes se virou observando o velho correr para os chinelos que estavam no chão servindo de gol da pelada dele e do amigo. Gol do pai. Felicidade de Nunes, orgulho e vergonha confundidos, compartilhados.
Pouco tempo depois daquilo o pai faleceu. Nunes afundou em depressão e largou a bola. Um dia foi a um show de samba, convite de amigos que tentavam animá-lo, tocou primeiro o Martinho, ficou sentado, reparou ligeiramente em uma morena, mas o pensamento o arrastou de volta, depois veio a Beth, e o incomodo piorou, todo mundo muito feliz, e ele só lembrava do pai correndo para o gol. Mais tarde, João Nogueira já tocava os acordes finais, ouviu um violão triste e a letra falando dele, do pai, a sua vida vindo na lembrança, ficou feliz por um tempo, mas logo a música o carrega, “Num dia de tristeza me faltou o velho/ E falta lhe confesso que ainda hoje faz/ E me abracei na bola e pensei ser um dia/ Um craque da pelota ao me tornar rapaz/ Um dia chutei mal e machuquei o dedo/ E sem ter mais o velho pra tirar o medo/ Foi mais uma vontade que ficou pra trás”. Ouviu a música com atenção, o nó crescendo na garganta, a cabeça parecia inchar, o mundo lhe saindo pelos olhos, terminada a música, correu. Ninguém o alcançou.
Dia seguinte estava em frente à sede do time, pouco tempo depois era titular. Em casa, a foto do pai no Maracanã vestindo o manto, muito sorridente ainda com o copo de cerveja na mão, exigência da mãe. Exigência de Nunes.
Tornou-se ídolo e marcava seus gols. O time era um sonho, e ganhar o Campeonato Brasileiro parecia realidade, era possível. Mas o jogo de ida foi duro e eles perderam. No jogo de volta os dois times fizeram uma partida emocionante, empataram em dois a dois no segundo tempo. Estádio lotado, tomado pela emoção, Nunes disparou rumo a lateral esquerda e recebeu um belo passe, lançamento longo, chutou em cima do zagueiro e a bola voltou correndo para a linha de fundo, Nunes parou de frente para o defensor e o mundo silenciou em sua cabeça, pareceu uma eternidade o que se passou em uns dois segundos. Lembrou do velho, do drible que tomou no dia em que chutou a canela do pai. Olhou para cima, fitou o jogador adversário como se fosse lançar, mas deu o drible para a esquerda, com a perna direita tocou para dentro, com o mesmo efeito de um elástico e deixou o marcador para trás, correu em direção ao gol, arrumou em um toque a bola e de bico desferiu o gol do título. O mundo gritava seu nome, e ele o do seu pai.

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Desde Pequenos

Nasceram gêmeos. O pai não conseguia acreditar no tamanho dos meninos. Jogador de basquete, fora campeão pelo Franca em um estadual apertado. O placar final era o nome do seu bar na avenida principal da pacata cidade do interior onde resolvera passar os restos dos seus tempos. 98X89. Educou os filhos de maneira a aprenderem todas as manhas do jogo e os meninos aplicados, ainda muito jovens, encestavam com precisão na tabela improvisada no quintal. Adílio, mais velho por uns cinco minutos, era mais encorpado, a mãe costumava dizer que ele roubava a comida ainda na barriga. Andrade era espirituoso com todos, mais leve e de melhor estatura, driblava mais que o irmão, mas ganhava topadas de ombro e ia ao chão às gargalhadas, sabia ser melhor no jogo de corpo. Foram tarde para a escola, sua mãe preferia educa-los sob seus cuidados de pedagoga mestra que se sentia na obrigação de inventar uma escola em casa, já que as da cidade eram tão simplórias que não valia o esforço de transformação e modernização aprendidas em seus anos de academia. Cansou-se da política e da briga de galos que observava e, durante algum tempo, fora obrigada a participar, para levantar recursos de pesquisas ou atingir metas traçadas ao longo de outras. Preferia a paz de seu pequeno reino, seus três amados súditos e um leal protetor, Engo, um vira-latas coxo que por sorte do destino foi achado no terreno da casa quando chegaram com a mudança, pequenino parecia forte e bonito, não tardou seus dotes sumiram e sobrou aquele indício de cão, mas a paixão havia se instalado no coração de mãe, o amor tem desses mistérios oftalmológicos.
A escola começou atrasada, uma greve de professores e funcionários defendia melhorias salariais e condições dignas nas instalações dos complexos escolares. Os meninos ouviam as histórias de sua mãe com atenção e compreendiam em parte os atrasos do calendário estudantil. A paciência e o basquete depois dos estudos caseiros moderavam as expectativas de ambos. Tinham poucos amigos e desejavam jogar em times completos. Quando a escola iniciou, tudo era muito morno e fácil. Não havia uma quadra e uma tabela onde pudessem mostrar seus valores de filhos de craque do basquete, a vantagem de seus corpos avantajados e o longo aprendizado na cesta de casa. As aulas da mesma forma eram morosas, sonolentas, e em nada lembravam os estudos com a mãe, os exemplos recheados de detalhes, estórias, lances capitais da política e os desenhos dimensionais da matemática. Voltavam para casa cansados, isolados pelo tamanho e pela inteligência. Suas vidas os condenaram à solidão, ao aparte social, se imaginavam siameses num deserto, unidos pela carne em eterna companhia.
Numa tarde de muito sol, dia quente e úmido, passaram pela loja do pai. Lá havia uma série de fotos do tempo de jogador, uma camisa devidamente enquadrada na qual havia uma dezena de assinaturas já quase apagadas pelo tempo, uma bola de basquete muito velha, de cor marrom, murcha e apoiada numa taça que vinha com letras grandes, JOGADOR DO ANO. O bar estava lotado, era domingo, o calor mantinha os copos cheios e a conversa alta. Encontraram o pai com os olhos e ele abriu uma Baré e entregou dois copos americanos para os meninos suados, um deles com a bola de basquete segura pela mão. Sentaram-se na calçada com as longas pernas abertas, bebiam o refrigerante e batiam com a bola no chão, de mão em mão passando por baixo dos quatro arcos desenhados pelas canetas.
Na tevê do bar passava futebol e os garotos, muito tímidos, se assustavam a cada grito alucinado que vinha lá de dentro. Não conheciam muito bem o bar do pai. A mãe rigorosa pelejava em distanciá-los daquele ambiente insalubre. Conheciam futebol, mas gostavam dos jogos do brasileiro de basquete que eventualmente passavam na Bandeirantes. Outros jogos só existiam em suas imaginações, porque nem na rádio ouviam noticias, brincavam de narrar os jogos dos times até chegarem ao placar escrito nos jornais, revezavam o ganhador para não haver brigas, decisão paterna que aproximou os irmãos amigos.
A curiosidade era demais também, tanta alegria deve ter um bom motivo, foram ver o jogo com os loucos do bar. Não precisaram se aproximar muito, a altura bastava para a cabeça de cada cachaceiro servir de porta-copo. E no placar da tevê aparecia escrito, Flamengo 2X0 Vasco. Um jogo longe, no Rio de Janeiro. O pai notando a curiosidade juvenil chamou os dois para o balcão, Vocês gostam de Futebol, perguntou. Os meninos se olharam e pareciam pensar, ficou louco. O pai entendeu, apresentou o jogo em linhas rápidas, e os fez acompanhar um jogador especial que estava em campo. Não tardou o meia invadiu a área pelo centro do gramado, correndo em movimentos pendulares a cada marcador que ficava para trás, num derradeiro corte derrubou o arqueiro e guardou a bola nos fundos da rede. O grito geral. Garrafas caindo. Homens velhos se abraçando. Uns poucos de cabeça abaixada. Os meninos se arrepiaram. Num movimento instantâneo, de gêmeos, se olharam com as lágrimas descendo do rosto, um espelho.

Nasciam ali dois flamenguistas. O resto de parede do bar foi preenchido com o pôster do campeonato nacional daquele ano e fotos do Galinho. O rádio de pilha passou a fazer parte do campo de basquete familiar, ficava pendurado em um galho de mangueira para que o som chegasse até os jovens. Hoje, Adílio e Andrade são jornalistas. Na televisão do bar o velho pai acompanha as narrações do filho, orgulha-se da inteligência e coragem das observações de Adílio. Ao lado da antiga caixa registradora, o jornal aberto na página de esportes, no topo a manchete Milhões Sem Sorte e o texto severo de Andrade que não perdoa nem dirigentes, nem jogadores, pelo atual estado de seu time do coração. O pôster daquele campeonato está em casa, coberto de fita durex, pendurado na porta do armário do quarto dos dois irmãos.