terça-feira, 10 de julho de 2007

O jogador, o político e o trabalhador

Nos primeiros passos já se encontraram na viela que unia os barracos da favela. Costumavam brigar entre si pelos espaços mais planos do beco para jogarem paredão. Muito desajeitados corriam atrás da bola dente-de-leite, lá ia ela despencando ladeira abaixo, e cresceram com pernas fortes e pulmões fartos. Pouco antes da adolescência já eram peladeiros respeitados entre os colegas. Marinho estudava na escola do bairro de baixo, sua mãe trabalhava como doméstica para famílias abastadas e conseguiu uma vaga para o filho, tinha bolsa integral, e como era forte e bom jogador, entrou para a seleção da escola. Garoto estudioso, atleta aplicado, procurava se destacar na escola. Não gostava de voltar para casa muitas vezes, se sentia culpado por ter uniforme caro e oportunidades melhores que seus amigos. Ficava na rua procurando campos para jogar futebol, e às vezes jogava em três ou quatro no mesmo dia, chegava em casa exausto, mas só dormia depois que a avó tomava sua lição de casa. Velha integra e orgulhosa, falava ao seu ouvido que ele iria sair daquela vida de miséria com as próprias pernas. De fato.
Mozer não tinha uma boa família, como tantos da favela seu pai saíra de casa, sua mãe tomou o mesmo rumo do marido e bebia quase todo o orçamento familiar. Seus irmãos, quase todos mais velhos, trabalhavam com pequenos serviços para o tráfico, não eram ambiciosos, então não preocupavam a irmã mais velha. Ela escolheu Mozer como cria, ele era diferente, exigente em tudo que fazia, já mostrava raça encarando os mais velhos nas pequenas desavenças familiares e criticava o modo com que eram tratados na rua quando ela o levava junto para o supermercado onde trabalhava. Mozer ia cedo para a escolinha da favela e fazia os deveres de casa acompanhado da irmã, que ainda vigiava os horários das peladas, quando anoitecia buscava o menino pela mão para descansar e não se misturar com os malandros.
Tita era o mais abusado dos três nas peladas, jogava na frente zombando dos outros meninos, colocava entre as canetas, dava chapéu, só não fazia muitos gols. Seu negócio era abusar da paciência dos colegas. Irritava Mozer que pelo espírito competitivo e força de liderança queria que seu time vencesse, e muitas vezes perdiam, porque Tita brincava demais e não batia pro gol. Subia a ladeira aos reclames do amigo e corria fazendo galhofa, lembrando da entortada que dera no chefe dos irmãos de Mozer. Não era muito medroso, e até para os traficantes o horário do futebol era sagrado, como Tita apenas demonstrava habilidade, deixavam passar. Também tinha seu pai, que era homem respeitado na comunidade, já tinha sido vereador. Ele que conseguiu o terreno do campo de futebol, que arrumou verba para a construção da pista de skate, que montou o centro de convivência jovem, de onde tem saído muito músico, cantor de rap, dançarinas, cantoras, enfim, seu objetivo é manter os jovens ocupados, e tem se saído bem. O garoto era protegido.
Marinho cursava faculdade de biologia na federal, pirou com um documentário sobre vida animal e queria fazer aquilo, mas um olheiro o levou para o América, nem passou por peneira, foi direto para o profissional e já tem gente no exterior de olho nele, mas na imprensa dizem que o Tricolor e o Flamengo fizeram propostas tentadoras. Comprou um apartamento pequeno para a irmã e a mãe morarem e sonha em abrir um pequeno negócio para os irmãos. Dois estão de avião ainda, só pelos trocados, e outros dois são coletores de papel de uma cooperativa, tiveram medo demais do que viam.
Mozer parou com o futebol e até ganhou uns quilinhos. A cara está redonda e a barriga saliente. Um tempo atrás fazia parte da rádio comunitária, gostava de ser animador das festas que o pai de Tita organizava e acabou sendo influenciado pelo coroa. O velho um dia olhou diferente para o garoto que lia seus textos na rádio. As palavras eram sofisticadas para um jovem, seu pensamento politizado e ao mesmo tempo poético. Encantou o velho que como o olheiro no futebol, recrutou Mozer para seu time. Hoje continua seus estudos, com muito sofrimento conseguiu passar em filosofia na faculdade estadual e já fala como político, anda pela favela com desenvoltura e conseguiu se candidatar para vereador. Um verdadeiro carismático, afirma o pai de Tita.
Esse por sua vez não gostava de escola, apesar de demonstrar inteligência quando apertado pelas professoras, mas não se entendia com história, geografia, sociologia, tudo lhe parecia enganador. Sair da sala e entrar na favela o irritava, não reconhecia seu mundo nos livros e corria para a pelada, ali ele esquecia tudo e zombava da vida com seus dribles e cortes, continua muito amigo de Marinho e Mozer, faz questão de recebe-los em seu apartamento na Barra. Exato, virou empresário dos grupos de pagode que se formavam no centro de convivência e, com o dinheiro entrando, fez saltos altos, comandando seu selo independente. Desfila na favela sempre que tem tempo, procura os meninos bons de bola e os apresenta nas peneiras, para os que conseguem entrar ele garante contrato. Joga bola em um clube social e tem orgulho da foto na sala abraçado com o Péle e o Chico Buarque, numa pelada de seu time contra o Politheama, perderam sem gols, mas Tita deu um chapéu no músico e um elástico no Rei.

3 comentários:

Fernando Amaral disse...

Fico imaginando o Figueredo, o Baroninho, o Uli Gueler... Moçada legal esta aí.

Anônimo disse...

Não entendo de futebol. entendo um pouco de texto e de gente. que linguagem linda a sua. que figuras poéticas, analogias. mistura vida e poesia. mistura ficção e realidade. mistura espaço de pobreza com lugar de esperança.

Renato Parente disse...

Obrigado...