quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Desde Pequenos

Nasceram gêmeos. O pai não conseguia acreditar no tamanho dos meninos. Jogador de basquete, fora campeão pelo Franca em um estadual apertado. O placar final era o nome do seu bar na avenida principal da pacata cidade do interior onde resolvera passar os restos dos seus tempos. 98X89. Educou os filhos de maneira a aprenderem todas as manhas do jogo e os meninos aplicados, ainda muito jovens, encestavam com precisão na tabela improvisada no quintal. Adílio, mais velho por uns cinco minutos, era mais encorpado, a mãe costumava dizer que ele roubava a comida ainda na barriga. Andrade era espirituoso com todos, mais leve e de melhor estatura, driblava mais que o irmão, mas ganhava topadas de ombro e ia ao chão às gargalhadas, sabia ser melhor no jogo de corpo. Foram tarde para a escola, sua mãe preferia educa-los sob seus cuidados de pedagoga mestra que se sentia na obrigação de inventar uma escola em casa, já que as da cidade eram tão simplórias que não valia o esforço de transformação e modernização aprendidas em seus anos de academia. Cansou-se da política e da briga de galos que observava e, durante algum tempo, fora obrigada a participar, para levantar recursos de pesquisas ou atingir metas traçadas ao longo de outras. Preferia a paz de seu pequeno reino, seus três amados súditos e um leal protetor, Engo, um vira-latas coxo que por sorte do destino foi achado no terreno da casa quando chegaram com a mudança, pequenino parecia forte e bonito, não tardou seus dotes sumiram e sobrou aquele indício de cão, mas a paixão havia se instalado no coração de mãe, o amor tem desses mistérios oftalmológicos.
A escola começou atrasada, uma greve de professores e funcionários defendia melhorias salariais e condições dignas nas instalações dos complexos escolares. Os meninos ouviam as histórias de sua mãe com atenção e compreendiam em parte os atrasos do calendário estudantil. A paciência e o basquete depois dos estudos caseiros moderavam as expectativas de ambos. Tinham poucos amigos e desejavam jogar em times completos. Quando a escola iniciou, tudo era muito morno e fácil. Não havia uma quadra e uma tabela onde pudessem mostrar seus valores de filhos de craque do basquete, a vantagem de seus corpos avantajados e o longo aprendizado na cesta de casa. As aulas da mesma forma eram morosas, sonolentas, e em nada lembravam os estudos com a mãe, os exemplos recheados de detalhes, estórias, lances capitais da política e os desenhos dimensionais da matemática. Voltavam para casa cansados, isolados pelo tamanho e pela inteligência. Suas vidas os condenaram à solidão, ao aparte social, se imaginavam siameses num deserto, unidos pela carne em eterna companhia.
Numa tarde de muito sol, dia quente e úmido, passaram pela loja do pai. Lá havia uma série de fotos do tempo de jogador, uma camisa devidamente enquadrada na qual havia uma dezena de assinaturas já quase apagadas pelo tempo, uma bola de basquete muito velha, de cor marrom, murcha e apoiada numa taça que vinha com letras grandes, JOGADOR DO ANO. O bar estava lotado, era domingo, o calor mantinha os copos cheios e a conversa alta. Encontraram o pai com os olhos e ele abriu uma Baré e entregou dois copos americanos para os meninos suados, um deles com a bola de basquete segura pela mão. Sentaram-se na calçada com as longas pernas abertas, bebiam o refrigerante e batiam com a bola no chão, de mão em mão passando por baixo dos quatro arcos desenhados pelas canetas.
Na tevê do bar passava futebol e os garotos, muito tímidos, se assustavam a cada grito alucinado que vinha lá de dentro. Não conheciam muito bem o bar do pai. A mãe rigorosa pelejava em distanciá-los daquele ambiente insalubre. Conheciam futebol, mas gostavam dos jogos do brasileiro de basquete que eventualmente passavam na Bandeirantes. Outros jogos só existiam em suas imaginações, porque nem na rádio ouviam noticias, brincavam de narrar os jogos dos times até chegarem ao placar escrito nos jornais, revezavam o ganhador para não haver brigas, decisão paterna que aproximou os irmãos amigos.
A curiosidade era demais também, tanta alegria deve ter um bom motivo, foram ver o jogo com os loucos do bar. Não precisaram se aproximar muito, a altura bastava para a cabeça de cada cachaceiro servir de porta-copo. E no placar da tevê aparecia escrito, Flamengo 2X0 Vasco. Um jogo longe, no Rio de Janeiro. O pai notando a curiosidade juvenil chamou os dois para o balcão, Vocês gostam de Futebol, perguntou. Os meninos se olharam e pareciam pensar, ficou louco. O pai entendeu, apresentou o jogo em linhas rápidas, e os fez acompanhar um jogador especial que estava em campo. Não tardou o meia invadiu a área pelo centro do gramado, correndo em movimentos pendulares a cada marcador que ficava para trás, num derradeiro corte derrubou o arqueiro e guardou a bola nos fundos da rede. O grito geral. Garrafas caindo. Homens velhos se abraçando. Uns poucos de cabeça abaixada. Os meninos se arrepiaram. Num movimento instantâneo, de gêmeos, se olharam com as lágrimas descendo do rosto, um espelho.

Nasciam ali dois flamenguistas. O resto de parede do bar foi preenchido com o pôster do campeonato nacional daquele ano e fotos do Galinho. O rádio de pilha passou a fazer parte do campo de basquete familiar, ficava pendurado em um galho de mangueira para que o som chegasse até os jovens. Hoje, Adílio e Andrade são jornalistas. Na televisão do bar o velho pai acompanha as narrações do filho, orgulha-se da inteligência e coragem das observações de Adílio. Ao lado da antiga caixa registradora, o jornal aberto na página de esportes, no topo a manchete Milhões Sem Sorte e o texto severo de Andrade que não perdoa nem dirigentes, nem jogadores, pelo atual estado de seu time do coração. O pôster daquele campeonato está em casa, coberto de fita durex, pendurado na porta do armário do quarto dos dois irmãos.

2 comentários:

Fernando Amaral disse...

O meia era o Sávio ou o Iranildo????? rs.... Abraço!

Anônimo disse...

Belo texto psicanalítico sobre a relação mãe-bebê, sobre as expectativas dos pais, seus desejos e o mundo, sedutor, apresentando o diferente.
Deve ser a convivência...